Brasil - Argentina - Mário de Andrade

Seguem alguns trechos da crônica do escritor paulista, publicada no Estado, em 22/01/39.
E foi nessa atmosfera de vitória que principiou o famoso jogo Brasil-Argentina, de que certamente não tiraremos nenhuma moral. Os nacionais escolheram o lado pior do campo, com uma ventania dos diabos contra, varrendo tudo, calor, bola e argentinos contra o nosso gol. Principiou o jogo. Os argentinos pegaram com os pés na bola e... Mas positivamente não estou aqui pra descrever jogo de futebol. Só quero é comentar.
Ora, o que se via desde aquele início? O que se viu, se me permitirem a imagem, foi assim como uma raspadeira mecânica, perfeitamente azeitada, avançando para o lado de onze beijaflores. Fiquei horrorizado. Procurei disfarçar, vendo se me lembrava a que família da História Natural pertencem os beijaflores, não consegui! Nem sequer conseguia me lembrar de alguma citação latina que me consolasse filosoficamente! Enquanto isso, a a raspadeira elétrica ia assustando quanto beijaflor topava no caminho e juque! fazia mais um gol. Era doloroso, rapazes.
Mas era também admirável. Quem já terá visto uma força surda, feia mas provinda duma vontade organizada, que não hesita mais, e diante de um trabalho começado não há transtorno político, financeiro, o diabo! que faça parar!... Eram assim os argentinos, naquela tarde filosófica. Não que eles se alardeassem professores de ordem, de energia ou de coisíssima nenhuma.
Quem quiser me compreender compreenda, mas no fim do quarto gol eu tinha me naturalizado argentino, e estava francamente torcendo para que... nós fizéssemos pelo menos uns trinta gols. Mas logo bem brasileiramente desanimei, lembrando que seria inútil uma lavada exemplar. Não serviria de exemplo nem de lição a ninguém. Ao menos, meu amigo uruguaio foi generoso comigo, não teve o menor gesto de piedade. Comentava navalhantemente:
- Era natural que vocês perdessem... Os brasileiros "almejaram" vencer, mas os argentinos "quiseram" vencer, e uma coisa é almejar, outra é querer. Vocês... é um eterno iludir-se sem fazer o menor gesto para ao menos se aproximar da ilusão. Sim, os argentinos escalarram o quadro e este se preparou para o jogo; mas o que a gente percebe é que, na verdade, há trinta anos que os argentinos vêm se preparando para o jogo de hoje. A força verdadeira de um povo é converter cada uma das suas iniciativas ou tendências em norma quotidiana de viver. Vocês?... nem isso... Os argentinos, desculpe lhe dizer com franqueza, mas os argentinos são tradicionais.

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